Miriam Nekrycz – Retorno às Origens Judaicas

Na primavera de 1945, Stefcia lhe disse sobre duas moças judias que ela havia conhecido no moinho; elas queriam vê-la o mais brevemente possível. Um dia, elas vieram: outra sobrevivente judia havia lhes contado sobre a presença de Miriam na casa de Stefcia e elas queriam conhecê-la. Conversaram com ela como quem conversa com uma criança, coisa que havia muito tempo ninguém fazia, e pareciam preocupadas com seu futuro.

Esse encontro despertou na pequena Miriam um desejo de procurar por parentes judeus fora da Europa. Ela até se lembrou do papelzinho costurado no casaco, para lembrá-la do Brasil.

As duas moças – Judith e Rosa – vieram à casa de Stefcia várias vezes, tentando convencer Miriam a passar alguns dias com elas. Miriam, a princípio não queria ir, mas Stefcia a encorajou tanto que ela acabou indo – somente para passar alguns dias.

Havia seis judeus na casa: as duas moças, a mãe de uma delas, o irmão da outra, e um pai com seu filho. Todos a tratavam carinhosamente, não se importando com o fato de que ela falava polonês, nem com seus hábitos de católica.

Mas pouco a pouco ela começou a se lembrar do iídiche; ela também começou a chamar Dona Babcia de “vovó”, sentindo-se parte da família.

Muitos judeus sobreviventes tinham formado uma comunidade naquele lugar, e eles tinham decidido celebrar a primeira Páscoa depois da guerra. Todos os membros da comunidade tomaram parte nos preparativos, falando sobre a libertação do povo judeu da escravidão no Egito e sobre suas famílias nos anos anteriores à guerra. No último dia do feriado, as orações em hebraico fizeram-na sentir que aquele povo era o seu povo, a quem ela na verdade pertencia. Como a única sobrevivente na família, ela era a única que poderia preservar a memória de seus entes queridos. De repente, ela não tinha mais medo de ser judia. Nos próximos dias, ela se esforçou para falar iídiche, para grande alegria de sua nova família: “Dos kind ret iidish” – “A criança fala iídiche” -, diziam uns aos outros.

Durante todas aquelas semanas ela visitou Stefcia e o bebê Piotrus apenas algumas vezes.

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Franklin D. Roosevelt. (Pintura a óleo).

Um dia, as bandeiras vermelhas foram hasteadas a meio-pau pela morte do Presidente Roosevelt – os Estados Unidos ainda eram aliados da União Soviética. Logo depois, em 8 de maio de 1945, a Alemanha Nazista capitulou. Todos festejavam a derrota, tanto os russos quanto os nacionalistas ucranianos que os haviam combatido – todos, exceto os judeus.

Todos os judeus naquela comunidade estavam ansiosos por deixar a terra que havia sido tão hotil a eles, e começar uma vida nova em outro lugar. Certo dia, Rosa chegou em casa dizendo que tinham conseguido um vagão de carga e que aquela era uma oportunidade única; eles teriam quer partir o mais depressa possível, não havia tempo para dizer adeus a Stefcia e a Piotrus.

Por duas semanas eles viajaram rumo a Lublin em um vagão de carga aberto, expostos ao sol do dia e ao frio da noite. Com eles, Babcia levou sua inseparável vaca, o único bem que tinha conseguido salvar dos tempos de antes da guerra. Eles desejavam chegar a Lublin, na Polônia central, mas no caminho ouviram sobre o recente massacre de 150 judeus sobreviventes em Kielce, em um pogrom, e o lugar ficava próximo a Lublin. Então a “família” decidiu continuar viagem prosseguindo até Lodz, onde havia uma comunidade maior, com judeus vindos da Polônia e de outros países.

Depois que Judith e Rosa conseguiram convencer Babcia a vender a vaca, entraram na cidade, que era uma grande capital para eles. Em Lodz encontraram uma comunidade judaica bem organizada: eles tinham uma sinagoga e um escritório onde as pessoas podiam cadastrar-se para encontrar parentes no exterior.

Elas se mudaram para um apartamento que pertencia a uma família judia antes da guerra, o qual compartilhavam com outra família judia. De qualquer forma, aquele apartamento era o melhor lugar do mundo.

Assim que chegaram, registraram-se na Kehilá (escritório central da comunidade). Miriam disse aos atendentes que tinha dois tios com o mesmo sobrenome vivendo na Palestina, e que também tinha parentes no Brasil e nos Estados Unidos, mas não sabia seus nomes ou sobrenomes. Os atendentes anotaram tudo o que ela disse e prometeram que tentariam encontrar seus parentes e a avisariam caso tivessem notícias.

Naquele escritório, todos procuravam alguém; as paredes estavam cobertas de bilhetes, placas e papeis com nomes escritos. Muitos gastavam horas e horas lendo todas aquelas notas; às vezes se ouvia uma explosão de gritos e choro – alguém tinha encontrado alguém.

Miriam enviou várias cartas a Stefcia e Piotrus, mas não recebeu resposta. Mas tarde soube que Stefcia havia voltado para a casa de seus pais, de modo que perderam contato.

Nessa época, pela primeira vez ela ouviu sobre o que de fato acontecera aos judeus que haviam permanecido nos guetos ou tinham perecido nos campos de concentração. Ela nunca tinha ouvido nada a respeito de câmaras de gás ou crematórios e essa foi uma revelação que muito a abalou. O choque foi grande, mas Miriam foi consolada por Babcia, que lhe disse que, apesar de ter perdido quase todos os membros de sua família e ser muito velha para construir qualquer coisa, ela ainda queria viver.

Pouco tempo depois disso, a filha de Babcia, Rosa, casou-se com um jovem soldado judeu que havia combatido no exército vermelho. Seu nome era Nissan e ele também tinha perdido sua casa e toda a sua família, exceto por um irmão. Ele trouxe nova vida a Babcia, e ela não era mais triste e amarga.

Lodz era a maior cidade industrial da Polônia, com prédios acinzentados devido à fumaça vinda das chaminés. Mas, embora a maior parte da cidade tivesse uma aparência suja, nada parecia mais assustador do que o velho distrito onde o gueto havia sido selado, com suas ruas cheias dos restos da pobreza e desolação dos anos anteriores.

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O Gueto de Lodz. (Maquete).

Uma escola judaica foi aberta em 1945. A maioria dos professores e alunos era constituída de sobreviventes de campos de concentração e florestas e daqueles que tinham sido escondidos em casas de arianos. Crianças de toda a Europa Oriental, Polônia, Ucrânia e Lituânia, cada uma falando a sua língua, tinham somente um denominador comum: o iídiche. Pela primeira vez ela ouviu sobre Eretz Israel, a sua pátria materna, onde um dia eles seriam livres das perseguições e da discriminação. A escola era um lugar onde os estudantes sentiam-se como irmãos e irmãs, ansiando por um futuro melhor.

Na escola, as crianças cantavam músicas compostas pelos partisanos nos guetos e nas florestas; declamavam poesias escritas por Katzenelson, o poeta judeu morto em Auschwitz, o qual havia escrito que nunca mais crianças judaicas cantariam na Polônia. Muitos adultos vinham à escola para ver as crianças cantarem e declamarem.

No inverno, a “família” de Miriam decidiu viajar para Berlim. De fato, todos os judeus ansiavam por deixar a Polônia antes que as fronteiras fossem fechadas pelos soviéticos, mas isso só era possível por vias clandestinas. Havia gangues que organizavam o transporte de grupos. Certa noite, quando estava muito frio, chegou a vez de eles irem para Berlim; seria de caminhão e eles deveriam chegar à capital alemã na manhã seguinte. Contudo, poucas horas depois de partirem, descobriram que os motoristas haviam abandonado todos os passageiros numa estrada cheia de neve, sem saber exatamente onde estavam.

No dia seguinte, Rosa e Judith decidiram tentar arrumar uma carona e chegar a Berlim de qualquer jeito. A pequena Miriam, Nissan e Babcia ficaram para trás. Depois de alguns dias decidiram ir a pé até a estação de trem. A viagem demorou dois dias.

Não era fácil embarcar em um trem rumo a Berlim. As autoridades soviéticas interrogavam cada pessoa antes de permitir seu embarque. Nissan quase foi impedido de tomar o trem por ser um ex-soldado, mas com coragem disse aos russos que ele tinha se alistado voluntariamente no exército vermelho para combater os nazistas e defender o povo russo, lutando por ele com todas as suas forças. Em vez de manda-lo para a Sibéria, como era de se esperar, os oficiais permitiram que os três prosseguissem juntos para Berlim.

Dentro de poucas horas chegaram à zona soviética de Berlim. De lá foram para a Gemainde – o escritório da comunidade judaica – onde encontraram Rosa e Judith. O local era tão caótico que se parecia mais com um campo de concentração do que com um escritório. Não ficaram muito tempo lá, pois seu objetivo era chegar à zona norteamericana da cidade, antes que os russos fechassem a passagem entre os dois lados.

Após alguns dias de burocracia, finalmente conseguiram cruzar para um campo de refugiados mantido pela UNRRA no lado norteamericanos de Berlim, no bairro de Schlachtensee. O campo era limpo e bem organizado.

 

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