Após ser libertado por tropas americanas, Ben Abraham passou dois anos recuperando-se em hospitais aliados na Alemanha. Quando a guerra acabou, ele pesava 28 quilos e sofria de tuberculose dupla, escorbuto e diarreia.
Durante a recuperação, teve contato com agentes judeus que, atuando na Alemanha, cadastravam os interessados em ir para a terra de Israel clandestinamente, já que a Grã-Bretanha, que na época exercia o mandato político sobre a Palestina, estava bloqueando a imigração dos judeus. Graças a esses agentes, Ben Abraham foi informado do endereço de sua tia paterna, que era casada e morava em Tel Aviv, tendo se mudado para lá e antes da guerra. Ela se chamava Topka e tinha dois filhos pequenos.
A viagem clandestina a Eretz Israel seria uma das maiores aventuras de sua vida. O “navio” no qual ele embarcaria – na verdade tratava-se de um velho barco de pesca – partiria da costa francesa, mais precisamente da região de Marselha. A viagem da Alemanha à França teve que ser feita em vagões de carga, num trem também muito velho, alocado pelos agentes judeus.
Ele e as outras pessoas do grupo que havia sido selecionado para a viagem – 127 pessoas – foram levados para uma chácara perto de Marselha, onde aguardariam o momento de embarcar. A espera durou duas semanas, ao fim das quais dois caminhões – muito velhos – chegaram para apanhá-los e levá-los para a praia. O trajeto, através de um bosque, foi feito durante a noite.
Era 22 de novembro de 1947. Nessa noite, eles embarcaram no Marie Annik, um barco de pesca com capacidade para 50 pessoas que havia sido fabricado em 1927. Ao ver o “navio”, Ben Abraham se perguntou como caberia tanta gente nele.
No porão do navio, havia beliches de 5 andares. Ben Abraham logo se instalou em um beliche que ficava mais perto da saída do porão, pois assim respiraria ar mais fresco. A alimentação oferecida aos passageiros consistia de um pão e duas sopas por dia, feitas com a água do mar. Como era também no mar que eram lançados os detritos do navio, algumas pessoas, principalmente as mulheres, não queriam tomar a sopa.
Um dia após partirem da França, o navio recebeu mais 50 refugiados judeus, vindos de Argel. Um outro navio aguardava o Marie Annik para embarcá-los em alto mar, e assim ele seguiria viagem com mais pessoas dormindo nos mesmos beliches.
O Marie Annik foi rebatizado, e passou a se chamar Haportzim, em hebraico, que significa “Aqueles que ultrapassam o bloqueio”. De fato, o bloqueio britânico representava uma ameaça constante para qualquer embarcação de refugiados que tentasse cruzar o Mediterrâneo. Os aviões e navios que o patrulhavam constantemente o faziam justamente em busca de barcos como aquele. Assim, o navio foi pintado e repintado várias vezes pelos tripulantes durante a viagem, que durou cerca de duas semanas.
Uma outra estratégia também foi utilizada para camuflar o navio, especialmente quando aparecia algum avião no horizonte: todos os passageiros desciam para o porão, e os tripulantes jogavam dois tonéis de peixes velhos no convés, para dar a impressão que se tratava de um inocente barco de pesca. Isso foi feito pelo menos três vezes durante a viagem.
Ao fim de duas semanas, o Haportzim parou na costa da terra de Israel, em frente a Gaza, pois o motor do navio havia quebrado. De lá, o capitão enviou uma mensagem codificada para a base em Tel Aviv, avisando que tinham conseguido reparar o motor e que já estavam a caminho. Chegaram a Tel Aviv, perto do Rio Yarkon, na manhã de 4 de dezembro de 1947. Ali já havia barcos à espera, que rapidamente transportaram os imigrantes à terra. A praia estava cheia de judeus residentes em Tel Aviv, para dar cobertura aos recém chegados caso autoridades britânicas aparecessem.
Assim que desembarcaram, os imigrantes foram levados para um conjunto de prédios que ficava perto da praia. O grupo que os recebeu batia na porta dos apartamentos e avisava para o morador – o qual na maioria dos casos havia acabado de acordar – que ele precisava dar abrigo temporário para um punhado de refugiados. Meia hora depois, apareceu um fotógrafo na área, que passava de apartamento em apartamento para fotografar os recém-chegados. Quando o fotógrafo chegou ao apartamento onde estava Ben Abraham, colocou três poltronas uma ao lado da outra para que pudesse fotografar os 6 hóspedes de uma vez – 3 sentados e 3 em pé. Cerca de uma hora depois, o fotógrafo voltou trazendo as carteiras de identidade que passariam a ser portadas pelos refugiados, com suas respectivas fotos – réplicas perfeitas dos documentos oficiais emitidos pelos ingleses, com assinatura e tudo.
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Pouco após sua chegada, Ben Abraham foi morar com sua tia paterna. Com a ajuda da instituição de imigração, conseguiu seu primeiro emprego em Israel, como mecânico na companhia de ônibus Dan, em Tel Aviv.
Quando eclodiu a Guerra de Independência de Israel, em maio de 1948, Abraham presenciou o ataque aéreo egípcio à rodoviária de Tel Aviv, em que centenas de civis foram mortos. Ele estava dentro de sua oficina na rodoviária e por isso não foi atingido pelas bombas. Mas pôde ver quando uma delas atingiu um ônibus cheio de passageiros. Todos morreram.
No dia seguinte, escapou da morte mais uma vez: um Spitfire egípcio deu um voo rasante bem na rua em que ele estava passando a pé. Uma das balas rasgou a ombreira direita de seu paletó. E só.
Ele queria muito lutar na Guerra de Independência, mas devido às suas condições de saúde não foi admitido como soldado. Então comprou um caminhão da antiga reserva militar inglesa – segundo ele, muito velho – e trabalhou no exército israelense como motorista.
Depois da guerra, foi trabalhar na pioneira companhia de água israelense, no processo de dessalinização da água do mar. Ben Abraham contava que suas três máquinas produziam apenas três baldes de água potável por dia.
Certa vez, quase morreu asfixiado numa usina de processamento de sal. Foi retirado do local às pressas e socorrido imediatamente. Sobreviveu, mas decidiu mudar de emprego.
Também trabalhou em prospecção de petróleo em uma área próxima ao deserto do Negev, mas tudo o que ele e seus companheiros conseguiram encontrar foi água – bem preciosíssimo em Israel naqueles tempos.
Em 1955, ficou sabendo que o Consulado Brasileiro em Israel tinha anunciado vagas para imigração para o Brasil. Ele foi lá se cadastrar, mas ficou um pouco desanimado quando viu o tamanho da fila de interessados. Quando, alguns dias depois, voltou ao consulado para buscar seus documentos, foi surpreendido com a notícia de que sua inscrição tinha sido aceita, e que ele poderia viajar e permanecer no Brasil com visto de imigrante. Depois de dois anos residindo aqui, teria a opção de se naturalizar brasileiro.
Ao vir para o Brasil, Ben Abraham pensava apenas em conhecer o país e voltar. Mas quando chegou, foi recrutado por israelenses para ser colaborador do Mossad (serviço secreto de Israel), o que continuou fazendo até meados da década de 1990.
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