No final do outono, chegaram rumores sobre como os judeus em outras cidades tinham recebido ordens para juntar seus pertences e deixar suas casas. Muitos deles simplesmente tinham sido reunidos na praça do mercado e executados pelos alemães.
Uma noite, Miriam e sua família acordaram com pessoas gritando e batendo na porta. Eram os nazistas, que ordenaram que saíssem da casa em 20 minutos, levando somente o que pudessem carregar. A casa foi lacrada e eles foram proibidos de voltar para lá.
Nas ruas, centenas de famílias andavam na neve, sem saber para onde seriam levadas. A mãe de Miriam criou coragem e não foi para onde os nazistas os mandavam ir; em vez disso, levou as crianças para a direção oposta, rumo à estação ferroviária. Continuaram a andar ao longo da via férrea até que chegaram à casa de uma mulher polonesa que havia sido empregada de tia Ana. O nome dela era Bolka.
Bolka os recebeu muito bem, e eles puderam passar algumas horas escondidos em um quartinho nos fundos da casa. Daquele quarto, conseguiam ouvir os amigos do marido de Bolka queixando-se do fato de que os alemães tinham lacrado as casas das famílias judias deportadas, o que impedia que eles pudessem apoderar-se de seus pertences.
Bolka cozinhou para eles e seu marido lhes disse que todos os judeus de Luck tinham sido confinados no velho distrito da cidade, onde ficavam a Grande Sinagoga, a Igreja Católica e a antiga fortaleza da cidade. Parecia que eles não tinham outra escolha a não ser seguirem as ordens. Assim, deixaram a casa de Bolka e encontraram uma casa vazia para passar a noite. Na manhã seguinte, foram-se para o gueto.
Quando entraram no gueto, foram para a casa de um parente, que estava cheia de gente. Eles não tinham comida, nem madeira, e a pouca água que tinham ficava congelada dentro do balde. As pessoas que não tinham lugar para morar dentro do gueto estavam vivendo na Grande Sinagoga.
Passados alguns dias, a mãe de Miriam começou a prepará-la para um plano de escapar do gueto, o que aconteceu logo. Um de seus tios, que vivia em uma cidadezinha cerca de 17 quilômetros de Luck, conseguiu enviar alguns camponeses para o gueto, os quais tiraram Miriam de lá, escondida em uma carroça. Aparentemente tiveram acesso ao gueto entrando para a Igreja Católica. Poucos dias depois, sua mãe, irmã e irmãos também foram tirados do gueto e todos foram viver em Kopaczówka, com os avós. Os alemães ainda não haviam ocupado aquela cidade, de modo que a população judaica ainda podia ter uma vida relativamente normal.
Mas essa situação não durou muito tempo: logo os nazistas chegaram e os decretos começaram. A primeira medida foi levar todos os homens judeus para o trabalho forçado. O tio de Miriam foi levado para demolir a sinagoga, a qual tinha sido construída por sua família anos antes, e morreu em consequência de um acidente durante o trabalho de demolição. O avô de Miriam também faleceu pouco tempo depois, e novamente eram somente mulheres e crianças na casa: a avó, a tia com seus dois filhos, a mãe e seus quatro filhos.
Um dia, dois oficiais da SS decidiram expulsá-los da casa, para que pudessem ocupá-la. As três mulheres e sete crianças tiveram que encontrar uma casa pobre e pequena para morar. Algum tempo depois, os oficiais que os haviam expulsado de sua casa, aparentemente sem razão alguma, foram até sua nova “casa” e espancaram tia Sosia; ela quase morreu devido aos ferimentos.
Quando a primavera chegou, sua mãe ouviu dizer a respeito de uma fazenda na aldeia vizinha de Bryszcze, onde um Volksdeutsche estava aceitando judeus para trabalhar. Um dos parentes deles era responsável pelo trabalho dos judeus, e assim todos foram para Bryszcze. A mãe e a tia de Miriam saíam cedo de manhã e trabalhavam o dia todo no campo, mas não recebiam nem salário e nem rações. Elas não podiam comer as hortaliças que ajudavam a colher.
Miriam, seu primo e seu irmão tentavam ser úteis aos vizinhos, para que eles lhes dessem um pouco de comida. O irmão de Miriam começou a tomar conta da casa de uma senhora, e assim podia trazer um pouco mais de comida para a família.
Em 22 de agosto de 1942, a mãe de Miriam ouviu dizer que todos os judeus do gueto de Luck tinham sido levados em caminhões para uma área fora da cidade, e depois fuzilados e jogados numa vala. Sabendo que logo a SS viria procurar por judeus em Bryszcze, a mãe e a tia decidiram se esconder com as crianças na floresta. A avó decidiu ficar e o irmão foi deixado na casa da senhora para quem trabalhava, a qual prometeu à mãe que ele e os pertences deixados em sua casa estariam a salvo dos alemães.
Como era verão, logo encontraram um lugar para servir de esconderijo na floresta. Nos próximos dias, os nazistas chegaram na aldeia de Bryszcze e mataram todos os judeus que encontraram, inclusive a avó de Miriam.
Nas primeiras semanas no esconderijo na floresta, eles conseguiam sobreviver colhendo hortaliças e frutas dos campos e pomares que ficavam na aldeia próxima. As crianças mais velhas – Miriam e um de seus primos – saíam da floresta à noite e procuravam algo para comer e trazer para os outros. Mas quando chegou o outono, sobreviver tornou-se mais difícil, e as crianças começaram a pedir comida de casa em casa. Um casal de judeus e seu filho também viviam com eles na floresta.
Ao começarem as chuvas de outono, eles cavaram um bunker na terra e camuflaram a entrada com galhos e folhas. Fazia muito frio e, quando chovia, a água escorria para dentro do bunker.
Mas, em uma certa sexta-feira à noite, ela e seu primo foram pedir comida na aldeia. Ela bateu na porta de uma pequena casa e uma jovem senhora veio atender. Ela não parecia irritada como os outros ucranianos; deu-lhes alguma comida para comer e também um pouco para levarem para a família na floresta. Quando já estavam saindo, a mulher perguntou a Miriam se ela sabia trabalhar e cuidar de criança; ela disse que precisava costurar e não tinha tempo para fazer o trabalho da casa. Miriam poderia ficar na casa dela para trabalhar e trazer comida para sua família na floresta.
Isso era inacreditável! Ela voltou correndo para a floresta e contou para a mãe o que a mulher havia dito. Sua mãe ficou tão feliz que até chorou, e lhe disse para ser obediente e útil. Sua mãe disse-lhe que, se um dia a guerra acabasse e ela sobrevivesse, ela deveria ir e contar para o resto da família o que tinha acontecido a eles. “Não esqueça!”, disse ela.
Miriam voltou para a casa de Stefcia na mesma noite. Stefcia lhe mandou dormir em um pequeno quarto inacabado nos fundos da casa. No dia seguinte, lhe mandou tomar um banho e deu-lhe algumas de suas roupas velhas para usar. Assim, ela começou a tomar conta do bebê de Stefcia, de sua casa e de seus animais. Ela não sabia fazer nada disso, exceto cuidar do bebê. Stefcia a ensinava impacientemente, mas ela lhe obedecia. Stefcia também lhe dava comida para levar à floresta.
Essa situação continuou por vários dias, até o final de outubro. Foi quando, num domingo à tarde, quando ela já se aproximava do bunker levando um grande saco de comida, ela ouviu homens gritando. Chegando mais perto, conseguiu ver homens usando uniformes alemães e da milícia ucraniana, e então ouviu os ruídos dos tiros. Caiu no chão e ouviu o som das balas que vinham em sua direção; escondeu-se entre as folhas ao ouvir os passos dos homens vindo à sua procura. Algum tempo depois foram embora e ela conseguiu ir ao bunker para ver o que havia acontecido: sua mãe e os gêmeos, sua tia e os dois filhos, o casal e o filho deles – estavam todos mortos.
Quando Miriam voltou para a casa de Stefcia, esta tentou confortá-la dizendo que eles não teriam chance de sobreviver com a chegada do inverno. Poucos dias depois ela foi visitar seu irmão Moniek; os dois combinaram que não visitariam um ao outro até o final da guerra, e que seguiriam a recomendação da mãe de obedecerem e serem úteis aos seus protetores.
Como o passar do tempo, Stefcia e ela começaram a desenvolver alguma afeição. Ela tomava conta do bebê como se fosse um de seus irmãozinhos. Stefcia lhe ensinava como se comportar como católica, e dizia a todos que ela era uma sobrinha órfã que tinham vindo do outro lado do Rio Bug.
O comandante da aldeia sabia que Stefcia estava escondendo uma menina judia em casa e disse a ela que, se alguém a denunciasse a ele, ele seria obrigado a matar a menina. Mas um dia ele veio a cavalo e disse a Stefcia que os alemães estavam vindo procurar judeus escondidos de casa em casa. Stefcia a escondeu num armário velho e eles não a encontraram.
Ela ia aprendendo a ser uma católica. Como não lhe era permitido recitar as rezas judaicas que sua mãe lhe havia ensinado, ela derramava suas lágrimas diante de um crucifixo e fazia seus pedidos a Jesus, o que contribuía para aliviá-la em momentos de angústia. Ela sentia falta de seu irmão Moniek, mas Stefcia não a deixava ir vê-lo.
A família do marido de Stefcia morava em uma outra aldeia, a alguns quilômetros de distância. Tanto o marido de Stefcia quanto seu irmão mais novo estavam combatendo no exército vermelho, e assim a outra nora e seus dois filhos moravam com os sogros. No verão de 1943, Stefcia decidiu mudar-se para a casa dos sogros, que não se importaram com o fato de que Miriam era uma criança judia.
Em toda aquela região, o extermínio dos judeus parecia algo natural para os ucranianos; eles ocupavam suas casas e “herdavam” seus bens. Tudo parecia como se a vida judaica jamais tivesse existido na região. E como os judeus não estavam mais por lá, os ucranianos dirigiam seu ódio e perseguições contra os poloneses, que também tinham perdido suas casas e fugido para outros lugares. Os ucranianos agiam incitados pelos alemães, que lhes haviam prometido uma pátria independente.
No outono de 1943, surgiram rumores de que algo havia mudado na frente de batalha, pois os alemães tinham parado de avançar. No inverno, quando a neve cobria toda a região, um grupo de trabalhadores exaustos e famintos apareceu na aldeia, escoltados por policiais alemães. Falavam uma língua estranha e as pessoas diziam que eles eram judeus húngaros. Alguns deles vinham com frequência para perto da casa de Stefcia; eles olhavam para Miriam com lágrimas nos olhos e diziam “Kishlaim” – “menina pequena”, em húngaro. Parecia que eles sabiam que ela era judia. Certamente não tinham encontrado nenhuma outra criança judia nas aldeias de toda a Ucrânia.
Algum tempo depois, aqueles homens desapareceram. Os aldeões diziam que eles tinham sido fuzilados e enterrados em uma vala perto da floresta. Enquanto isso, ela ouvia que os russos estavam avançando e libertando as cidades ucranianas. As ações dos grupos partisanos foram muito importantes naquela época, pois eles conseguiam explodir pontes, linhas de trem e estradas, tornando assim mais difícil a retirada dos alemães.
No final de Janeiro de 1944, a frente de batalha chegou a Luck e a cidade foi bombardeada. No meio do caos, entre vários aldeões escondidos num abrigo antiaéreo, ela ouviu uma mulher se lamentando por ter vindo do Brasil, um país pacífico, para visitar a Polônia.
Brasil? Ela se lembrava de sua mãe falando sobre uma das tias, tios e outros parentes que viviam naquele país. Também se lembrava das amigas da oficina de costura de Luck; elas tinham deixado a cidade para se mudarem para o Brasil. A fim de não esquecer o nome do lugar, ela o escreveu em um pedacinho de papel, o qual costurou na barra do casaco que usava.
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